Entenda por que, em tempos de crise e coronavírus, a metáfora da “empresa camelo” faz mais sentido do que a de “startup unicórnio”.
Traduzido e adaptado de Silicon Valley Camels, will you please stand up – Kauffman Fellows
O termo “camelo” foi originalmente cunhado por Alex Lazarow em seu novo livro, Out-Innovate: How Global Entrepreneurs – from Delhi to Detroit – Are Rewriting the Rules of Silicon Valley (em tradução livre, Inovação de fora: como empreendedores globais – de Delhi a Detroit – estão reescrevendo as regras do Vale do Silício).
A seguir, entenda por que o Vale do Silício provavelmente precisará de camelos, e não de unicórnios, para superar a crise da COVID e a desaceleração econômica.
Para começar, caso você não saiba o que torna o camelo um ser tão especial, aqui estão três razões:
- Ele não é um ser de “faz de conta”. É um animal de verdade e capaz de sobreviver nos ambientes mais implacáveis do mundo.
- Ele consegue percorrer longas distâncias sem precisar de muita água. Mas, quando ele a encontra, consegue ingeri-la mais rápido do que qualquer outro animal (100 litros em 10 minutos).
- Ele é adaptado para viver em desertos ao redor do mundo, sob seca e calor.
Assim, talvez o camelo seja uma metáfora bem adequada para os tempos atuais. Diante da pandemia do COVID-19 e de uma onda de IPOs – alguns fracassados-, muitos líderes de startups têm questionado a metodologia de crescimento a qualquer custo que dominou a mentalidade do Vale do Silício. Num mundo em que os gastos com consumo estão caindo e a Teoria do Mais Tolo veio por terra, agora nos vemos em um deserto – e sem um gênio da lâmpada para ajudar a encontrar a saída.
Como chegamos até aqui? A estratégia do “fat cat”
O modelo de crescimento do Vale do Silício tem sido definido, por décadas, pela rápida aquisição de clientes, com o objetivo de impulsionar a inovação e a participação no mercado. Ben Horowitz’s, no artigo The Case for the Fat Cat Startup, explica essa lógica com clareza:
“Só existem duas prioridades para uma startup: conquistar o mercado e não ficar sem dinheiro. Funcionar de forma enxuta não é o objetivo final – nem ‘engordar’. Ambas são táticas para ganhar o mercado e não ficar sem dinheiro antes disso. Se atuar de forma enxuta for o objetivo, você pode perder a oportunidade de ganhar mercado – ou por não conseguir financiar as atividades de P&D para criar o produto ideal, ou por deixar um concorrente chegar primeiro. Às vezes, ‘engordar’ é a coisa certa a se fazer.”
E essa estratégia funciona. Muitos unicórnios nasceram com base nesse modelo e mudaram o mundo: Uber, Airbnb, Robinhood, entre outros. São empresas que fizeram ofertas massivas de subsídios e descontos para crescer sua base de clientes o mais rápido possível.
Estratégia do “gato gordo”: muito dinheiro para crescer o mais rápido possível
Contudo, se você pensar bem, perceberá como isso é um privilégio. Esse tipo de expansão rápida não seria possível sem o apoio de capital de risco. Um estudo do centro de pesquisa da Kauffman Fellows mostra que, enquanto as rodadas de investimento A e B cresceram, respectivamente, 68% e 62% desde 2008, o número de dias até a rodada seguinte caiu pela metade. Isso significa que, nas séries A e B, as startups estão queimando três vezes mais dinheiro do que uma década atrás. E todo esse dinheiro extra não está sendo usado para expandir o mercado.
Como afirma Alex Lazarow em seu livro, “o capital de investimento pode ser viciante. Se as empresas se acostumam a funcionar com combustível de aviação, fica cada vez mais difícil mudar para diesel”. Como resultado, existe o contraste entre os “vencedores a jato” da indústria de tecnologia e os grandes “perdedores” (como Theranos, Juicero e WeWork). Mesmo entre os cases de sucesso, de acordo com uma pesquisa da Correlation Ventures, financiar unicórnios, com poucas exceções, não se traduz em retorno extraordinário: entre as startups unicórnio que surgiram nas últimas décadas, os investidores obtiveram retorno abaixo de 10X para a maioria (62%) dos investimentos feitos.
A estratégia de crescimento a qualquer custo funciona bem em mercados do tipo winner-takes-all (o vencedor fica com tudo), ambientes hiper-otimistas e com capital de investimento abundante. A questão é: o que acontece nos outros 99% do tempo?
Alexa, o que é “startup camelo”?
Como aponta Lazarow, as startups camelo atendem às seguintes condições:
1. Elas têm, como foco, criar um produto ou serviço que atenda a uma necessidade crítica, e cobram pelo valor de sua criação – elas não se subsidiam pelo crescimento. Trata-se de um modelo economicamente sustentável desde o princípio.
2. Elas gerenciam os custos. Ou seja, elas gastam de forma proporcional ao negócio. É claro que os camelos crescem nos bons tempos, mas eles também são capazes de voltar a uma posição de sustentabilidade quando necessário. Veja o caso, por exemplo, da Grubhub, que se manteve sustentável a cada rodada de levantamento de capital.
3. Elas têm uma visão de longo prazo. É o caso da Qualtrics, cuja expansão aconteceu após seu 13º ano de existência, quando a empresa desenvolveu seu modelo corporativo.
Camelos nascem em alguns dos ecossistemas mais difíceis do mundo. Eles são criados para ter sustentabilidade e resiliência. Assim, conseguem transformar desafios em vantagens e prosperar no longo prazo.
Ok, camelos são mais resistentes, mas não chegam em primeiro, certo?
Errado. Há camelos sendo construídos fora do Vale do Silício, seja no Centro-Oeste americano ou no resto do mundo, e eles estão prosperando. Atlassian, Grubhub e Qualtrics são ótimos exemplos de startups que só buscaram crescer quando isso se mostrou necessário, que criaram um produto sólido, gerenciaram gastos durante todo o seu ciclo de vida e optaram por sustentabilidade em vez de rápida expansão.
Essa estratégia funciona também no próprio Vale do Silício. Um bom exemplo é o Zoom, uma das poucas empresas de tecnologia que abriram capital no ano passado e já eram lucrativas de fato. Embora o Airbnb tenha levantado mais de US$ 4,5 bilhões em financiamento privado, o Zoom, que agora tem valor de mercado de cerca de US$ 30 bilhões, levantou apenas US$ 146 milhões.
À medida que as startups tentam gerenciar e superar a crise, veremos que são os camelos (e não os unicórnios) que terão sucesso.
Por Flávia Siqueira
Vabo é especialista em People Skills, OPM pela Harvard Business School e mestre pelo COPPEAD/UFRJ, com extensão na EM Lyon Business School. Vendeu sua primeira startup antes dos 30 anos para o grupo B2W Digital e foi diretor da Stone Pagamentos. É CEO do Além da Facul, professor da Link School of Business e Empreendedor Endeavor.
Excelente texto. Obrigado!!
😀